“O cristão tem que andá a pé” | O Democrata

A falta de combustível nas bombas de todo o Brasil não é só transtornos, pois, em meio a essa crise, muitas pessoas têm descoberto e redescoberto a experiência de andar a pé.

Em minhas rotineiras andanças pela cidade, pelos caminhos que, com ou sem crise de abastecimento de combustível, normalmente percorro andando, tenho me deparado com pessoas que nunca antes havia visto do lado de fora de um carro.

Para algumas, a experiência é visivelmente traumática. Parece até que nasceram motorizadas. Ir de casa ao banco, às compras ou outro lugar qualquer é um martírio, um esforço hercúleo, por menor que seja a distância. A repulsa à caminhada afeta adultos e crianças.

Fiquei horrorizada, na manhã de segunda-feira, com a cena que presenciei nas imediações do São Roque Shopping Center. Uma menina que aparentava cerca de oito anos, entre berros e lágrimas, recusava-se a andar, dizendo que queria voltar para casa de carro.  A mãe explicava que o automóvel não tinha combustível e nem havia onde comprá-lo. A pequena permanecia irredutível. Nem mesmo as promessas de que ganharia figurinhas, maquiagem ou sorvete a demoveram do empacamento e do escarcéu. Por fim, a mulher pegou a filha no colo e partiram.

Embora mais contidos em fazer escândalos, também são muitos os adultos que têm se lamuriado exaustivamente por terem de deixar os carros nas garagens e tocar a vida momentaneamente a pé.

Diversas outras crianças, ao contrário, têm desfrutado das delícias e descobertas das  caminhadas. Andam saltitantes e até correm pelas calçadas, com ares de liberdade, curiosidade e alegria, enquanto acompanham adultos em afazeres pela cidade. Um homem, parado com dois meninos na Rua Dr. Stevaux, mostrava aos filhos o local do desabamento que eles viram noticiado no telejornal. Interessada, a duplinha fazia mil perguntas ao pai.

Andar a pé proporciona não somente a experiência de observar detalhes jamais  vistos quando a pessoa se locomove de carro, moto, ônibus ou mesmo bicicleta. Quem caminha também ouve muito do que “comenta-se pelaí…”, como diz há mais de meio século meu caro amigo Lécio, que assina a coluna “Outras Notícias”, em O Democrata.

Pela São Roque mais silenciosa e deserta destas dias, apurei os ouvidos e pude escutar também a conversa das mocinhas que trabalham na Zona Azul e, ultimamente, têm tido tempo de sobra para prosear. Uma delas, perto da agência central dos Correios, contava à outra que ainda há de realizar o sonho de ser engenheira. No banco do ponto de táxi do início da Av. Tiradentes, um homem dizia a outros que, se pudesse criar um bicho de estimação, teria um carneiro.

No semáforo da Av. John Kennedy com a Rua Alfredo Salvetti, duas senhoras de idade lamentavam a falta de remédios de alto custo na farmácia municipal e perguntavam-se, em tom de desolação, como fariam para comprar seus medicamentos, com a miserável aposentadoria que recebem.

Quem anda a pé vê mais, ouve mais e repara mais no que se passa a sua volta. Um menino muito bonitinho, com jeito de cinco ou seis anos, estava maravilhado com a Via Cerrone. “É passagem secreta, Vovô?”, perguntava ao senhor sorridente que o acompanhava na caminhada e prometia dali a pouco lhe apresentar os esquilos do Jardim.

Diante da vitrine de uma loja, na Rua XV de Novembro, uma senhora comentava com a balconista que há tempos queria dar uma volta pela cidade para comprar um par de botas para enfrentar o inverno, mas sempre vem de carro ao Centro e com isso não percorre o comércio local e acaba indo a Sorocaba, fazer compras no Shopping Esplanada.

Há muito a se ver e ouvir quando se anda a pé. Minúcias da arquitetura, da paisagem, da história, da decoração, do comércio, da organização e da desorganização da vida urbana e seus personagens passam despercebidos quando os pés não palmilham cada pedacinho do chão.

Enquanto os combustíveis não chegam às bombas ou são vendidos com preços abusivos e extorsivos, o melhor é fazer o possível para andar a pé. Faz bem à saúde e ao bolso.

E, para quem tem olhos de ver, andar a pé faz bem também à alma,  como cantou o mestre Luiz Gonzaga, em sua bela e poética “Estrada de Canindé”, composta em parceria com Humberto Teixeira:

“Quem é rico anda em burrico

Quem é pobre anda a pé

Mas o pobre vê nas estrada

O orvaio beijando as flô

Vê de perto o galo campina

Que quando canta muda de cor

Vai moiando os pés no riacho

Que água fresca, nosso Senhor!

Vai oiando coisa a grané,

Coisas qui pra mode vê

O cristão tem que andá a pé”.

Simone Judica é advogada, jornalista e colunista de O Democrata (simonejudica@gmail.com)

 

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