Breve releitura de uma “Carta de um diabo a seu aprendiz” | O Democrata

ERRATA SOBRE ESTE ARTIGO

Em 1942, C. S. Lewis (Clive Staples Lewis), ex-ateu convertido ao cristianismo em 1929 aos 31 anos, publicou o livro “Cartas de um diabo a seu aprendiz”, em que Fitafuso, o protagonista, educa seu sobrinho Vermebile na arte de iludir e tentar as pessoas no sentido contrário ao cristianismo. Hoje em dia, certamente o autor é mais conhecido pela obra “O leão, a feiticeira e o guarda-roupas”, transformada há alguns anos em filme de sucesso estrondoso sob o título “As crônicas de Narnia”. Mesmo assim, as “Cartas” são fonte permanente de estudo e oferece uma leitura excepcional, repleta de sarcasmos em estilo que saltam do divertido para o profundo. Pensando sobre o momento que vivemos, lembrei do livro e, ao relê-lo, encontrei logo na primeira carta o que procurava. Vejamos no trecho abaixo, um alerta do diabo ao aprendiz.

“Parece que você vê a argumentação como o melhor método para mantê-lo afastado das garras do Inimigo. Talvez fosse esse o caso se ele tivesse vivido alguns séculos atrás. Naquela época, os humanos sabiam muito bem quando algo era provado logicamente ou não; em caso afirmativo, simplesmente acreditavam. Ainda não dissociavam seus pensamentos de suas ações. Estavam dispostos a mudar o modo como viviam a partir das conclusões tiradas de uma certa cadeia de raciocínio. Mas, com a imprensa semanal e outras armas semelhantes, conseguimos alterar tudo isso. O seu paciente sempre foi acostumado, desde criança, a ter uma dezena de filosofias incompatíveis dentro de sua cabeça. Ele não classifica doutrinas basicamente como ‘verdadeiras’ ou a ‘falsas’, e sim como ‘acadêmicas’ ou ‘praticas’, ‘antiquadas’ ou ‘contemporâneas’, ‘convencionais’ ou ‘cruéis’. O jargão, e não a argumentação, é o seu melhor aliado para afastá-lo da Igreja. Não desperdice seu tempo tentando fazê-lo pensar que o materialismo é verdadeiro. Faça-o pensar que é algo sólido, ou óbvio, ou audaz – enfim, que é a filosofia do futuro. É com esse tipo de coisa que ele se importa”.

Eis o ponto. Se fosse usual na época, seguramente Lewis teria empregado a palavra “narrativa” para sintetizar aquilo que Vermebile, o aprendiz, teria que dominar para atrair pro lado diabólico o seu paciente. Não é exatamente a superficialidade do raciocínio o que estamos assistindo no dia a dia? Quem se importa, principalmente entre os jovens, com a argumentação mesma que envolve qualquer teoria? Doutrinados por ideias contaminadas pela contemporaneidade rasa, pela fluidez de conceitos, pela subversão da lógica e pela ruptura com tudo que signifique tradição, o novo homem, como se influenciado por Vermebile não perde tempo com o aprofundamento de coisa nenhuma.

A geração “lacradora” aceita a “lacração” como fim de papo e o “cancelamento” como expulsão da contradita incômoda do território dialético. O tal “lugar de fala”, essa invenção fascista e torpe, limitou a liberdade do indivíduo que, se não pode se expressar, não tem motivos para pensar. Isso sem um segundo de reflexão, levada pela onda de bolhas, “tribos” e grupos identitários de toda espécie, que dominam a cena. Em decorrência, o debate fica tão consistente quanto as discussões do BBB que, aliás, apenas replicam as plenárias das universidades. Reduz-se as transformações sociais mais profundas a qualquer ideia que, mesmo de modo epidérmico, dê impulso ao progressismo globalista. Então, pelo menos aparentemente, o que verdadeiramente é submerge, dando lugar ao que mesmo não sendo se estabelece como se fosse. Vivemos, portanto, um mundo de mentiras e autoritarismo.

Veja-se na obra de C. S. Lewis que em seu aconselhamento ao sobrinho, o diabo já identifica como aliado a “imprensa semanal e outras armas semelhantes”. Alguma surpresa em relação ao que estamos vivendo? Os meios de comunicação de massa, não apenas no Brasil, estão a serviço permanente de uma transformação que, sem investigar as raízes dos problemas, sem considerar o pensamento médio da sociedade, afirma uma falsa ordem, incluindo neste processo a religião cristã em todas as suas formas. O anticristianismo atual é tão patente que o próprio Papa só aparece para emitir mensagens quando são de concessão ao “politicamente correto”. Neste ponto, é legítimo especular se o mesmo não estaria colaborando de boa vontade para o esquecimento da cultura tradicional e da própria religião.

Também pode-se perguntar a que se referia Fitafuso quando citou as “armas semelhantes” à imprensa, no conjunto de aliados do diabo na tarefa de retirar o homem do seu caminho cristão e da compreensão das coisas. Provavelmente tinha em vista os livros e teorias com as quais se debatia na época, mas, estivesse escrevendo em 2021, Lewis diria pelo diabo, com todas as letras, que Facebook, Twitter, Whatsapp, Instagram etc., atuam no mesmíssimo sentido de destruição da fé em Deus e da religião pelo selo ameaçador que possui sobre a liberdade de expressão. Vozes discordantes são canceladas, nenhuma oposição é permitida. Alguém garante que os textos bíblicos seriam publicados sem restrições em uma dessas plataformas? Sua excelência, o algoritmo, permitiria?

O forçamento e limitação da comunicação global às plataformas big tech’s atende plenamente outro conselho do diabo ao sobrinho. Disse o Fitafuso em certo trecho do livro que “o problema da argumentação é que ela leva a batalha para o campo do Inimigo. Ele também pode argumentar”. Com isso, o diabo requer um território no qual seja imbatível, um no qual o argumento não tenha espaço. Lembrou o “lugar de fala”? É um bom exemplo. Quando, em qualquer circunstância, ele for negado, estará em curso uma manifestação diabólica – de impedimento do argumento, nos termos de C. S. Lewis. O domínio da linguagem, ao modo sugerido pelo diabo distribui termos que dispensam qualquer elaboração acerca do seu significado. Outro exemplo é o “negacionismo”. Esta palavra, antes associada quase exclusivamente ao holocausto promovido pelo nazismo, foi primeiramente capturada pelos aquecimentistas climáticos e, agora, aproveitada pela “covideiros”, para interditarem um justo debate acerca de argumentos que podem ser tão somente carregados de ceticismo, de prudência, ou pertencerem ao senso comum.

Ouso dizer, em vista das transformações em curso, e da evidente subordinação humana a condições e regramentos dos quais não participa a não ser como plateia obediente, sem que possa pensar, expressar, agir e cumprir seu destino livremente, que este é um bom momento para levar a sério as “cartas do diabo”. Quem sabe, cada um de nós, que enxergamos o missivista, deva elaborar e realizar respostas à altura e, se possível, ridicularizá-lo, como recomendou Lutero.

Valterlucio Bessa Campelo

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