Carlito foi adoçar o céu | O Democrata

 

Por mais concorrido que seja um velório, compará-lo a uma reunião festiva soa desrespeitoso à memória do falecido e à dor experimentada por quem lastima a perda de um familiar ou amigo estimado.

Todavia, por ser o falecido Carlos Gregório Vieira, o querido “Carlito do Coquinho”,  o velório tinha de ter, como de fato teve, ares de festa, pois assim ele cuidadosa e detalhadamente planejou:

Quero que tudo seja feito de acordo com a minha vontade, ou seja, quando eu morrer… quero que no velório seja tocada música popular brasileira, não quero choro, só alegria, porque sempre fui alegre, e quero que essa alegria seja até na hora da morte.”

As instruções foram escritas com caligrafia caprichada e lacradas em um envelope confiado ao genro em 1996, no dia em que Carlito faria sua primeira viagem de avião. Suspeitando que aquele imenso pássaro prateado não pairaria nos céus com o mesmo êxito e a mesma leveza das pipas que tanto apreciava fazer e empinar, registrou como seus familiares deveriam proceder, se recebessem a notícia de sua morte.

Carlito conheceu o Recife e voltou a São Roque e a carta, escrita em um papel delicadamente decorado com pequeninas flores e mantida em segredo por quase vinte anos, foi entregue a seus filhos e aberta, no último dia 21, momentos após seu falecimento.

Chegara, infelizmente, o tempo de cumprir seus comandos.

“…que eu seja velado no Cambará e o percurso (até o Cemitério da Paz) seja: Av. 3 de Maio, Av. Tiradentes, Rua Rui Barbosa, Praça Heitor Boccato, Rua Quinze de Novembro, Av. João Pessoa, Rua Padre Marçal… tudo isso acompanhado com música brasileira sendo tocada pelo carro de som do Boschetti.

É pedido meu. Que seja atendido.

Carlito.”

Seus filhos e netos esmeraram-se ao máximo para cumprir cada uma das instruções de Carlito: durante toda a noite do velório, um aparelho de som espraiava os acordes dos mais belos chorinhos e, pela manhã, o músico Will Gonçalves tocava em sua flauta, com visível emoção, música popular brasileira.

Quando a carta foi redigida, os velórios eram realizados no Cemitério do Cambará e aqueles que seriam sepultados no Cemitério da Paz eram levados por um carro fúnebre até sua última morada. Por isso Carlito escreveu o roteiro e desenhou um mapa com o itinerário que desejava fosse percorrido de um cemitério a outro.

A realização do velório ao lado do Cemitério da Paz tornou impossível esse derradeiro passeio pelas ruas da cidade, contudo, o carro de som do Boschetti, sexta-feira pela manhã, percorreu diversas vezes  o trecho mapeado enquanto anunciava, com palavras a um só tempo empolgadas e sentidas, o falecimento de Carlito e rememorava sua ternura e sua alegria, ao som de um bolero. Quantos o ouviram se emocionaram.

Das incumbências deixadas por Carlito a seus familiares e amigos, a mais difícil, sem dúvida, foi a que pedia para que não se chorasse sua partida.

– Como conter as lágrimas ao pensar que, daqui por diante, São Roque nunca mais verá Carlito a sorrir e  gracejar,  de jaleco e boné brancos, preparando e vendendo seus famosos e inigualáveis coquinhos, na esquina do Banco do Brasil, assim como pregando divertidas peças e inocentes sustos em seus inúmeros amigos ou empinando pipas com seu olhar alegre e sonhador, como se voasse com elas?

Doravante, sua figura querida, feliz, doce e carismática será vista somente com os olhos da alma, das lembranças e das saudades.

Seus contemporâneos verão Carlito lépido e faceiro a transitar pelos vagões de trem vendendo amendoim e exemplares do jornal O  Democrata, como fez durante os trinta anos em que viajou de São Roque a São Paulo para trabalhar nos escritórios da Estrada de Ferro Sorocabana.

Outros haverão de vê-lo ora à porta do Cine Central, ora à entrada do Cine São José, com seu tabuleiro, oferecendo entusiasticamente o “xebréu”, nome carinhoso que dera ao seu amendoim adocicado: “Olha o “xebréu”! Olha o “xebréu”!”

Os mais novos, por certo, terão olhos para ver Carlito a cozinhar e vender seu produto mais famoso: o coquinho!

Qualquer que seja a recordação, será doce, afetuosa e festiva como foi Carlito na vida e também na morte e trará a certeza de que a fama carinhosa que o envolvia não provinha apenas do sabor delicioso e inconfundível do “xebréu” e dos coquinhos caramelizados, mas, principalmente, decorria da pureza do seu coração e da  alegria singela e contagiante com que adocicava seus quitutes, seus relacionamentos e sua freguesia.

Desde que Carlito partiu, tenho visto nuvens sobre a cidade. Não são sinais de chuva. É a fumaça cheirosa exalada dos tachos de Carlito, chamado por Deus para preparar coquinhos e “xebréu” para os anjos, lá no céu.

P.S.: Carlos Gregório Vieira é nome de praça no bairro Parque Aliança, graças ao Projeto de Lei nº 1/2018, de iniciativa do vereador Guto Issa, aprovado na última sessão da Câmara Municipal.

A crônica acima, publicada em O Democrata em 30 de janeiro de 2015, dias após falecer o homenageado, integrou o Projeto de Lei, para minha honra. Obrigada, Guto Issa!

Simone Judica é advogada, jornalista e colunista de O Democrata (simonejudica@gmail.com.br)

Esta coluna tem o patrocínio de Cambalhota Educação Infantil

 

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