Crianças usam fitas no rosto para que colega com síndrome de Down não se sinta diferente | O Democrata

Pelo menos duas vezes por semana, os alunos do 2º ano do ensino fundamental de uma escola da Asa Sul, em Brasília, colam tiras de fita crepe no rosto. Não se trata de uma brincadeira, mas de um gesto de solidariedade ao colega Miguel Gadelha. Miguel, que tem síndrome de Down, começou um tratamento para exercitar a musculatura da boca que envolve usar fitas coladas no rosto. Aí os colegas decidiram ajudar.

“É pra aguinha mágica não cair”, diz uma das meninas.
“Essa aguinha mágica é a baba”, explica um colega.
“E é pra ajudar a musculatura da face, né?”, reforça a professora.

Uma das características mais comuns da síndrome de Down é a falta de tônus muscular, o que dificulta a fala. Miguel tem 10 anos e muita dificuldade para pronunciar as palavras. O uso das tiras, além de melhorar a capacidade de se comunicar, vai melhorar a mastigação e reduzir “a aguinha mágica” (veja abaixo).

A diretora pedagógica da escola, Consuelo Carvalho, diz que a ideia surgiu dos próprios colegas. “Quando o Miguel chegou pela primeira vez com a fita perguntaram o que era. Quando explicamos, eles perguntaram ‘a gente pode usar também?'”

“Ele se sente menos diferente, mais incluído, mais aceito.”

 A professora Cynthia Rosal, responsável pela turma, gruda tiras de esparadrapo em cada um dos alunos às terças e quintas, quando Miguel tem sessões de fonoaudiologia e coloca os adesivos. As fitinhas dele são aplicadas apenas pela fonoaudióloga.

O tratamento inclui outros recursos além dos adesivos. Há alguns dias, Miguel chegou na sala de aula com uma porção de creme de avelã sobre os lábios. O que num primeiro olhar dos colegas pareceu descuido, na verdade era um exercício para que o menino exercitasse a língua, “limpando” o produto da pele.

Como Miguel fala pouquíssimas palavras, ele também não consegue ler e escrever. Agora o foco tanto da fonoaudióloga como dos educadores é estimulá-lo a superar essa barreira e, para isso, o apoio dos colegas é fundamental.

Ele fala ‘oi’

O pai de Miguel, Leandro Gadelha, diz que ficou emocionado quando a diretora pedagógica mostrou a foto da turma do 2º ano inteirinha com a fita crepe colada perto da boca. “Eu fui tomado de uma emoção muito grande porque eu percebi a inclusão acontecendo de fato”, afirma.

Gadelha é funcionário da área administrativa da escola, mas não sabia do gesto dos colegas do filho. Para ele, além dos benefícios para Miguel, a inclusão modifica o grupo inteiro porque todos passam a aprender com as diferenças:

“Ali a turma tá aprendendo, ela tá aprendendo a trabalhar a questão de preconceito, ela tá aprendendo a trabalhar a solidariedade.”

Enquanto o G1 acompanhava uma manhã de aula, os colegas de Miguel chamaram a atenção para as conquistas do amigo.

“Ele vai aprender a falar normal, e não assim, ó.” Explicou um colega, dando uma espécie de grunhido.
“Mas dá pra entender ele”, disse outro.
“Ele já falou oi”, contou uma das crianças.
“Ele falou oi agorinha”, chamou a atenção outra.
“Oi, fala oi, Miguel”, diz a professora.
“Oi”, diz Miguel com um sorriso.

Apoio da família

Leandro Gadelha, o pai de Miguel, conta que a família sempre trabalhou para que o menino fosse independente. Miguel foi adotado quando tinha 11 meses e, até então, eles pouco sabiam sobre a síndrome de Down.

Leandro e Fabiana Gadelha, que moram em Brasília, já tinham uma filha, Valentina. Eles estavam no Cadastro Nacional de Adoção à espera do segundo herdeiro. Um dia, receberam o tão esperado telefonema para buscar o bebê e tiveram duas surpresas, lembra ele: a primeira era que o filho tão esperado tinha síndrome de Down. A segunda, que ele estava em Tibagi, no interior do Paraná.

“Quando nós chegamos no abrigo, o Miguel estava limpinho, muito bem cuidado”, recorda o pai. Mas apesar da boa aparência, Gadelha afirma que o desenvolvimento do menino não era animador:

 “Ele tinha 11 meses mas parecia ter 2, mesmo com o acompanhamento da APAE da cidade.”

A família, então, envolvida por uma espécie de “amor à primeira vista”, começou uma corrida para recuperar o tempo perdido. Miguel veio de Tibagi para Brasília e começaram as consultas com psicólogos, fisioterapeutas e fonoaudiólogos.

Quase uma década depois, eles garantem que tudo valeu a pena, ainda mais quando descobrem que o filho é tão querido pelos colegas. “Tanto eu quanto a minha esposa, a gente ficou muito emocionado de ver como ele é bem recebido e como ele tem aprendido tanto com os colegas”, afirma Gadelha.

“O fato de todo mundo da turma inteira ter se envolvido nessa missão do Miguel, que era ficar com essa fitinha porque é uma orientação da fonoaudióloga […]. Eu achei fantástico.”

Fortalecimento muscular: exercício para a fala

O uso terapêutico de fitas adesivas foi trazido por profissionais da fisioterapia, que aplicavam o método em atletas lesionados. Depois, estudos acadêmicos revelaram que a fita também era uma possibilidade para a fonoaudiologia.

Como uma característica da síndrome de Down é a hipotonia, ou seja, os músculos flácidos, as terapias incluem fortalecimento de todos os músculos, desde os das pernas necessários para andar até os da mandíbula utilizados na fala.

A fonoaudióloga Clarissa D’Almeida, que atende MIguel, explica que os adesivos agem de forma mecânica, dando continuidade aos exercícios feitos no consultório. “A fita exerce uma pressão no sentido contrário do movimento natural dele”, diz.

“Quando a gente aplica uma fita na bochecha, no queixo, a criança que tem dificuldade de vedamento labial vai ter um aviso, como se a fita tivesse avisando que ela precisa fechar a boca.”

A expectativa é que, com o fortalecimento gradual da mandíbula e dos mais de 200 músculos envolvidos na fala, Miguel consiga se expressar mais com as palavras. Atualmente ele consegue pronunciar “bom dia” e “papai”, por exemplo, além do nome dos irmãos e do “oi”, dito para a reportagem do G1.

Clarissa afirma que a capacidade cognitiva do menino é normal e ele entende comandos, mas não consegue executá-los: “Ele tem o comando de mexer a boca, só que o processamento desse comando, o ato motor, está interrompido”.

“Quando eu peço pra ele falar, ele olha pra minha boca e abre a dele. A linguagem é intelectual, mas a fala movimenta os músculos, e pra isso são feitos os exercícios.”

Segundo a fonoaudióloga, é difícil prever quando Miguel vai começar a falar e qual vai ser a complexidade das frases pronunciadas por ele. Por isso, uma das possibilidades é que o pequeno aprenda Libras, a Lingua Brasileira de Sinais.

“A minha intenção é que ele se comunique, seja por linguagem de sinais, gestos, o que seja. A fala é um resultado de uma compreensão, então o objetivo de se comunicar não é necessariamente falar”, assegura.

Post publicado nas redes sociais agradecendo a atenção dos colegas e da escola de Miguel (Foto: Facebook/Reprodução)

Além da fala, a fita ajuda em outras atividades que dependem do tônus muscular, como a mastigação e a salivação. Clarissa diz que o primeiro ponto trabalhado com Miguel foi a salivação excessiva.

Ela chama a saliva de “água mágica” – por isso os colegas do menino também se referem a “aguinha mágica”. Miguel está aprendendo que o líquido precisa ser engolido, e isso, conforme a fonoaudióloga, é fundamental para diminuir o preconceito que acaba cercando as crianças com Down.

“Muita gente não queria chegar perto dele porque existe esse estigma que a saliva é suja. Quando combinamos com a professora em como fazer aquilo [uso de fitinhas em toda a turma], foi um cuidado a mais para o Miguel não se sentir sozinho”, diz ela.

“Já existe a exclusão na sociedade, imagina se ele fosse o único usando fita na boca.”

Miguel, aos 10 anos, tem certa autonomia. Ele faz sozinho atividades como comer, ir ao banheiro e recolher os brinquedos ao final do recreio. A independência do filho é a maior preocupação de Leandro. “Quando eu estiver com 80 anos e respirando com um balão de oxigênio, o que vai ser dele? Ele precisa saber pegar um ônibus, esquentar a comida no microondas”, diz.

Enquanto isso, o menino conta com a ajuda dos pais e dos irmãos. Depois da chegada de Miguel, a família adotou um terceiro filho, Arthur. Leandro afirma que não espera como “recompensa” que Miguel trabalhe ou vá para uma universidade.

“Eu vi aquela professora com síndrome de Down e achei incrível”, diz ele ao lembrar de Débora Seabra, a brasileira que ultrapassou as barreiras da deficiência e se tornou professora. “Mas cada criança é de um jeito”, afirma Gadelha.

“Existe o ideal, o possível e o que de fato acontece. A gente tem que incentivar, dar as terapias que ele precisa, mas respeitar o tempo dele.”

Inclusão nas escolas: expectativa e realidade

Em cada turma da escola Cresça, onde Miguel estuda, em Brasília, há dois estudantes com alguma necessidade especial. Uma colega de Miguel, por exemplo, tem autismo. “Não dá para colocar mais porque precisamos atendê-los de forma diferenciada”, explica a diretora Consuelo Carvalho.

Para atender às crianças, um dos cuidados é a presença de um educador extra em sala de aula, o chamado monitor. Os professores passam por treinamentos e se reúnem pelo menos uma vez por mês para traçar novas diretrizes pedagógicas. Além disso, o currículo e o método de avaliação são diferentes dos demais alunos.

“As provas têm de ser menores e adaptadas à deficiência do aluno. O conteúdo é mais específico daquilo que ele sabe”.

Cynthia Rosal, a professora de Miguel, trabalha com crianças especiais desde 2011, quando chegou à escola. A primeira experiência prática em uma turma adaptada só veio 13 anos depois de concluir o curso de Pedagogia. Ela afirma que a formação dos profissionais não dá a devida atenção às crianças especiais.

“Ainda precisa evoluir, a faculdade precisa melhorar. A gente aprende muito na teoria, mas o professor tem que buscar se atualizar e conhecer na prática.”

Débora Nunes, monitora de Miguel há dois anos, se formou no final de 2017, mas afirma que mesmo os currículos mais recentes de pedagogia não são suficientes. “A faculdade não te dá esse suporte, tem que buscar. E atendendo a demanda de cada um”, afirma.

 O artigo 205 da Constituição Federal define a educação como um direito de todos e prevê que é dever do Estado oferecer atendimento educacional especializado (AEE) para as crianças deficientes.

Segundo Consuelo, porém, são raras as escolas que obedecem a legislação. “Muitas não recebem mesmo. Falam que não têm vaga, mas a verdade é que não querem ter o trabalho de ensinar alunos com necessidades especiais”, desabafa.

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