Livro de contos transborda violência dos conjuntos habitacionais, favelas modernas | Cultura

Um traficante pós-punk faz o tempo congelar no balcão da padaria, sob a tez mais escura que colore de sangue a bandeira de um país, ao invés do brilho dourado da agonia que dilacera vidas no cotidiano. Durante a viagem para um continente mítico que emerge dos becos escuros, onde o amor é fruto da comunhão secreta de corpos docentes celebrados numa canção que nunca ouvimos, mas que nos toca todos os dias como uma sinfonia régia entre a vida e a sorte refletida em cada criança pobre sobrevivendo em cidades condenadas. Não se enxerga melhor olhando de cima às profundezas do éden. A vida num tabuleiro de xadrez rubricada pelos instrumentos do poder soberano. Desfecho caótico? Não! Palavras de sangue, línguas de fogo lambendo os telhados de um conjunto habitacional, favela atrasadamente moderna. Esses são alguns dos galhos da ‘Árvore dos mutilados’, livro de Jaime Lira e Rogério de Souza, recém lançado pela Editora Patuá.

Músico de paixão e acadêmico de profissão, reencontram-se nas distâncias forçadas pela pandemia. Pela frieza dos bits cibernéticos, reaquecem amizades e escrevem, reescrevem e imaginam histórias, estórias e causos de infância. Analgésicos não habituais para suportar as perdas diárias na distopia pós-apocalítica. Soníferos para se manter em pé num mundo invertido. Assim, nasceu a obra e aprofundou-se as relações.
Constituído por 13 contos e duas músicas, o livro retrata, segundo os seus autores, inquietações, acertos de conta e vingança contra aqueles que historicamente ocuparam e, infelizmente, persistem em condições de privilégio numa sociedade erigida na desigualdade enraizada. Cepas diversas, os frutos desse tronco apresentam múltiplos sabores. Da vulgar violência cotidiana contra a população negra – quase sempre com final não feliz, retirantes nordestinos tentando sobreviver na selva inóspita da metrópole, jovens periféricos triturados pela miséria retroalimentada, caneta do Supremo Tribunal nada imparcial, religioso-político de trajetória que trombamos todos dias nas praças dos principais centros econômicos; aos delírios constrangidos e angustiantes da classe média que não se cansa de olhar no espelho.

Escrita que remeta a escritores como Rubem Fonseca, Patrícia Mello e Bráulio Tavares, com umbilical aproximação aos thrillers de Quentin Tarantino e às fantasias realistas dos autores da latino-américa da década de sessenta e setenta. Duas músicas findam a obra, porém, canções incrustadas no imaginário das personagens são ouvidas e sentidas entre as frestas frasais de todos os contos. Não sabemos se estamos diante de uma prosa musicada ou eterna canção não ritmada. Junto e misturado ao mesmo. Confusão organizada, simples, real.

Linguagem de rua, o livro parece ser destinado a um público que não frequenta museus ou salas de concerto. Talvez essa seja a magia própria dessa obra.

Árvore dos mutilados (2023)

Jaime Lira e Rogério de Souza
Editora Patuá
R$ 50,00

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