O maestro e compositor Heitor Villa-Lobos (1887/1959) realizou uma apresentação em São Roque em agosto de 1931. Essa informação encontrada no centenário Arquivo do Jornal O Democrata (desde 1917) poderia ser apenas um registro da passagem pela cidade um dos maiores compositores do Brasil, autor de mais de mil obras com reconhecimento internacional e profundo pesquisador dos ritmos brasileiros. No entanto, é uma peça do quebra-cabeça que ajuda a contar uma história esquecida.

Excursão Artística percorreu de trem o Estado de São Paulo, inspirou “O Trenzinho do Caipira” e vai virar documentário

O produtor e cineasta Dácio Pinheiro prepara o documentário “Excursão Artística Villa Lobos” quando o maestro reuniu músicos e cantores para apresentações em várias cidades do Interior de São Paulo. As viagens foram todas de trem com a primeira parada na estação de Campinas. O convite partiu do interventor e músico João Alberto Lins de Barros (1897/1955) nomeado pelo presidente Getúlio Vargas para governar o Estado de São Paulo entre 1930 e 1931. O maestro que tinha retornado da Europa aceitou o convite e desenvolveu o projeto.

Responsável pelo trabalho de pesquisa do documentário, Ana Cláudia Pereira Pinheiro entrou em contato com a Biblioteca Municipal de São Roque em busca de alguma notícia da apresentação. O chefe de Serviço da Biblioteca, José Carlos Baroni Garcia (Zé Balaio), fez a ponte e localizamos duas publicações. Em 2 de agosto de 1931 (o jornal circulava aos domingos), O Democrata informa que o concerto do ilustre maestro Villa-Lobos e notáveis artistas previsto para a sexta-feira (31 de julho) foi transferido para segunda-feira (3 de agosto). “Tendo adoecido ligeiramente a eximia pianista Nair Duarte Nunes, o prefeito Ismael Victor de Campos, pede para avisar o adiamento do espetáculo.”

Na Biblioteca de São Roque encontramos o livro “Excursão Artística Villa-Lobos”, de Antônio Chechim Filho (1905/2002), afinador da Fábrica de Pianos Brasil S/A que esteve em sete etapas do projeto ausentado-se somente nas últimas quatro apresentações. Cita que Nadir era “uma cantora de voz suave e muito bem empostada… Muito discreta e delicada vinha de uma enfermidade grave… Ao final da primeira temporada, estava exausta e foi substituída temporariamente por Anita Gonçalves.”

Turma do amendoim atrapalhava o maestro

Na semana seguinte (9 de agosto), O Democrata trouxe no rodapé da primeira página e que prosegue na página 2, crônica de alguém que assina apenas com pseudônimo “A.” e que demonstra irritação com as pessoas que quebravam cascas de amendoim atrapalhando a audição. A “rapsódia amendoinlesca” era comum no eventos da cidade.“Guerreamos o costume e o dr. Pires Germano, então delegado de polícia, veio de encontro dos nossos desejos, proibindo terminantemente nas casas de espetáculos e vizinhança a venda de amendoim em casca, só era vendido descascado, em grãos… Confesso que também gosto de amendoim e não escapo à regra [mas recomendo] somente em campo de futebol e circo de cavalinhos, ali se pode fazer barulho à vontade.”

Não foi apenas em São Roque que a “turma do amendoim” (expressão criada em 2009 pelo técnico do Palmeiras Luiz Felipe Scolari para denominar o grupo de torcedores que o criticava) teria atrapalhado Villa-Lobos. Antônio Chechim Filho relata. “Muitos desconheciam a necessidade de silêncio em uma sala de concerto… Nas cidades da Alta Sorocabana, de Avaré em diante, não se observava isto. Sempre depois do intervalo surgia um problema… As cascas de amendoim torrado. Villa-Lobos pediu as prefeituras para não permitirem a venda de amendoim com casca na porta dos teatros no dia do concerto, mas sempre havia alguém estalando cascas de amendoim.”

São Roque mereceu um destaque especial no livro do afinador de piano que também desempenhou outras importantes funções técnicas e administrativas na excursão, inclusive no transporte de um enorme piano de cauda de cidade em cidade. “Chegamos a São Roque num dia de frio intenso, uma multidão nos esperava com muitas flores… Os artistas tiveram que ficar agasalhados com luvas até a hora da apresentação… Fazia tanto frio que não conseguia dormir, apesar dos cobertores. Ao levantar, que surpresa! Os campos e telhados das casas estavam todos branco por uma forte geada. Visitamos uma chácara do senhor prefeito antes de seguir viagem”.

Sucesso a toda equipe da Gore Filmes na produção desse documentário de alto valor cultural e que também vai mostrar detalhes do comportamento do Villa-Lobos. Além disso, foi nos trilhos do Estado de São Paulo que surgiu a inspiração para a criação de uma de suas principais composições: “O Trenzinho do Caipira” nasceu no trajeto entre Bauru e Araraquara sendo executada pela primeira vez dias depois em Matão.

Vander Luiz