Murillo Silveira: entre boticões e pincéis | O Democrata

   

 

Desde a noite de 22 de março, imagino Murillo Silveira a contemplar o sítio Santo Antônio de outro ângulo. Leve de corpo e alma, não deve ter demorado a chegar ao céu, onde certamente gracejou com algum anjo, acomodou-se sobre uma nuvem e, ora sob o brilho da lua e das estrelas, ora sob os reflexos do sol, estuda as cores e os tons que de modo mais fiel retratariam seu cenário favorito, imortalizado em mais de uma centena de telas.

O falecimento de Murillo Silveira, aos 96 anos de idade, empobrece a arte e a história de São Roque e deixa a cidade mais triste.

Manuseando boticões ou pincéis, Murillo sempre exalou bom humor.

A profissão de dentista foi imposição da avó Mariquinha de Campos aos netos, os irmãos Murillo e Zeneu, pois havia poucos profissionais na cidade e, por isso, a carreira parecia promissora à matriarca da família. Sem vocação e sem meios de contrariá-la, formaram-se pela Escola de Farmácia e Odontologia de São Paulo, em 1943.

Após trabalharem durante cinco anos em São Paulo, Murillo e Zeneu abriram seu primeiro consultório em São Roque, instalando-o na casa de Dona Marucha, na Rua XV de Novembro, onde depois foi construída a Caixa Econômica Estadual. Passado algum tempo, juntos mudaram-se para o prédio Pontes, na Praça da Matriz.

Murillo também trabalhou na Brasital, cuidando dos dentes dos operários, e no Grupo Escolar Dr. Bernardino de Campos, usando de sua extroversão e alegria para amenizar o medo que os dentistas e seus apetrechos provocavam nas crianças.

A carreira de dentista terminou com a aposentadoria, nos anos 1970, quando fechou o consultório, que então funcionava em sua casa, na Rua Rui Barbosa.

O amor e a pintura caminharam juntos na vida de Murillo. Rosa Guilhermina Silveira, com quem se casou em 1949, presenteou-o com um jogo de tintas, ao saber que o noivo gostava de desenhar e pintar. O mimo e o gesto da amada avivaram-lhe o talento.

Nas horas vagas, mergulhava no estudo e na prática da pintura, retratando, principalmente, os prédios históricos de São Roque, como a capela de Santo Antônio, a igreja de São Benedito, a velha Praça da Matriz, além de casarios.

Eleito festeiro de São Roque em 1953, ao lado de Vasco Barioni, a dupla decidiu providenciar a pintura interna da igreja Matriz. Após uma peregrinação em busca do artista ideal para executar a obra, chegaram aos irmãos Pedro e Ulderico Gentili, italianos dedicados à arte sacra e bastante famosos no Brasil desde os anos 1930, pelas belíssimas decorações de templos em diversas cidades

Em 16 agosto de 1954, data magna da festa, o altar-mor estava concluído. As obras prosseguiram com os festeiros posteriores, até sua conclusão, em 1958.

Durante o período em que os irmãos Gentili trabalharam em São Roque, Murillo aproveitou para observar as técnicas usadas por Pedro, principalmente, o que contribuiu de maneira decisiva para seu aprimoramento.

A proximidade com Vasco Barioni, tanto por serem vizinhos na Rua Rui Barbosa quanto pelo gosto comum por arte e cultura, permitiu a Murillo participar ativamente dos bastidores e da agitação dos áureos tempos do Cine São José.

Criativo, talentoso e alegre, Murillo contribuía na preparação dos cenários das peças que eram encenadas no palco do Cine São José e chegou a atuar em algumas delas. Dessa fase veio a convivência com Romolo Lombardi, pintor, decorador e cenógrafo do Teatro Municipal de São Paulo, que Vasquinho  contratou para vir a São Roque ensinar-lhes métodos de construção cenográfica.

Murillo, a esposa Rosa e os filhos Murillinho e Paulo abriam sua residência para hospedar Romolo Lombardi e outros artistas que o acompanhavam nas visitas a São Roque. Hospedá-los em sua casa significava estreitar a amizade e aperfeiçoar-se cada vez mais, pois eles eram muito generosos no compartilhar de seus conhecimentos e técnicas.

Na década de 1950, a casa de Murillo foi ponto de encontro cultural entre ele, Vasco, os irmãos Gentili, Romolo Lombardi e outros artistas que os acompanhavam a São Roque.

Uma curiosidade das visitas de Romolo Lombardi à casa de Murillo é que o pintor sofria de problemas respiratórios e tinha falta de ar, o que levou o anfitrião a mandar colocar veneziana no quarto do hóspede, para amenizar o mal que afligia o amigo.

A efervescência cultural do Cine São José e da cidade arrefeceram, mas o talento e a produção artística de Murillo Silveira seguiram, no silêncio do seu ateliê, na velha casa da Rua Rui Barbosa, onde pintou centenas de telas por meio das quais ele permanecerá vivo nas casas, nos corações e na história são-roquenses.

Os quadros de Murillo, São Roque conservará.

Mas, e aquela alegria pura de Murillo? Essa, infelizmente, a cidade perdeu para sempre.

Simone Judica é advogada, jornalista e colunista de O Democrata (simonejudica@gmail.com.br).

Esta coluna tem o patrocínio de Cambalhota Educação Infantil.

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