Redação do Enem como propulsora de políticas públicas

Mais uma vez o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, joga luz em assuntos que as camadas dirigentes (política e econômica) fingem não ver ou não querem ver. Foi assim com os temas de “Publicidade infantil em questão no Brasil” (2014); “Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil” (2016); e “Manipulação do comportamento do usuário pelo controle de dados na internet”. A profusão do Enem e a relevância social dos pontos geraram, naqueles momentos, discussões diversas na sociedade e, em alguns casos, políticas públicas para mitigar os efeitos dos respectivos problemas, contrariando tradicionais mandatórios.

Na prova deste ano, escolheu-se o tema “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. Pesquisas sucessivas de órgãos como o IBGE e IPEA revelam transformações estruturais na disposição da sociedade brasileira, especialmente com a entrada massiva da mulher no mercado de trabalho formal; aumento no número de lares chefiados por mulheres e mães solos; e a ocupação de vagas nos diferentes cursos do ensino superior por mulheres.

No entanto, a essa revolução nos diferentes tipos de ocupação social e profissional não se registaram mudanças profundas na disposição e comportamento dos grupos de poder, constituído, predominantemente por homens brancos e de meia idade. O machismo estrutural, base fundante da Latino-américa colonial, se moveu pouco ou não alterou nada. Em enquetes jornalísticas, transeuntes questionados sobre o que fazem em casa quando chegam do trabalho, quase a totalidade dos homens dizem que vão assistir TV, especialmente o futebol. Já as mulheres respondem que se dedicam a tarefas do lar, principalmente o preparo do jantar. Dados na própria proposta de redação do Enem 2023 trazem que, comparadas aos homens, as mulheres dedicam o dobro do tempo da semana às tarefas de casa, com destaque para o trabalho do cuidar das crianças, idosos, enfermos e pessoas com deficiência, invisibilizadas, como milhares de atividades desempenhadas por mulheres. Isso influi diretamente no tempo que as mulheres têm para potencializar a sua vida. Fazer aquilo que gera prazer. Divertir-se. Dedicar-se aos estudos. Vislumbrar outros horizontes.

Essa travessia torna-se mais tortuosa devido ao machismo estrutural coadunado ao excludente sistema econômico vivenciado de forma predominante no mundo. Profissões que, historicamente, são majoritariamente ocupadas por mulheres não recebem o prestígio social e, por conseguinte, a recompensa financeira em comparação àquelas outras atividades praticadas por homens. No Brasil, dentro da mesma ocupação é comum mulheres receberem menos de 70% do salário de um homem realizando as mesmas tarefas e possuindo trajetória escolar e experiências semelhantes. “Enquanto os homens exercem/ Seus podres poderes/ Morrer e matar de fome/ De raiva e de sede/ São tantas vezes/ Gestos naturais”, cantou Caetano.

Na prestigiosa área de saúde, as enfermeiras – mulheres são predominantes nessa profissão – recebem, infinitamente, menos do que um médico – homens são majoritários nessa ocupação. Na desprestigiada área da educação, um segmento recebe salário bem abaixo da média nacional daqueles que possuem ensino superior completo, pré-condição para ser docente: educadoras do Ensino Fundamental I (1º ao 5º ano), constituído, na sua grande maioria, por mulheres.

O tema da redação do Enem 2023 jogou, mais uma vez, luz em questão essencial para uma sociedade que almeja justiça no seu sentido lato. Até quando fingiremos não enxergar o machismo estrutural, fomentado pelo sistema econômico, desvalorizando toda atividade desenvolvida por mulheres? No caso específico de trabalho do cuidado, experiências em diferentes países apontam caminhos para acabar ou mitigar de forma real com esse mal. O desenvolvimento de políticas públicas que visem ampliar unidades e horários das creches e centros de saúde mental e de acolhimento de idosos; associar o trabalho do cuidar ao tempo para aposentadoria; etc.

A participação do Estado na indução de mudanças na disposição e comportamento da sociedade faz-se necessário para se garantir que as mulheres também tenham tempo para potencializar a sua vida e, quiçá, imprimir uma nova maneira de enxergar a humanidade. Que o Enem 2023 fomente, mais uma vez, discussão e transformação urgente na sociedade brasileira.

Rogério de Souza, doutor em Sociologia, escritor e professor no IFSP.

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