Nesta semana, os personagens mais comentados da cidade não são foliões ousados e criativos, mas fiscais e ambulantes, graças à ação fiscalizadora da Prefeitura, realizada no último dia 8, na Estrada do Vinho, que resultou na apreensão de frutas e pães caseiros comercializados por um casal de idosos.
Após o vídeo da abordagem dos fiscais aos ambulantes percorrer as redes sociais como um rastilho de pólvora, o caso tanto despertou compaixão e indignação quanto passou a ser usado como válvula de escape para externar o descontentamento de muitas pessoas com a administração municipal e para fomentar a oposição ao governo Claudio Góes.
Se o debate e os ânimos já vinham bem quentes, ferveram quando o vereador Marquinho Arruda subiu à tribuna da Câmara Municipal para, num discurso inflamado, declarar que a medida tomada pelos fiscais significa tirar o direito de o cidadão trabalhar e impele o casal, que acumula onze tentativas frustradas de abrir uma empresa no Município, a pedir esmolas para sobreviver.
E, como uma coisa puxa outra, o vereador emendou à defesa aos ambulantes uma crítica contundente ao prefeito e a diretores e fiscais da Prefeitura, trazendo à baila problemas que incomodam a população, como abundância de mato em escolas municipais, deficiências dos serviços de coleta de lixo e manutenção dos espaços da cidade, crise na Santa Casa e suspeitas de irregularidades não fiscalizadas no comércio instalado na rua Sotero de Souza.
A Prefeitura rebateu o ataque. Em nota oficial, apoia o procedimento efetuado pelo fiscal e assegura que ele agiu no estrito dever legal de fazer cumprir a lei municipal do comércio ambulante, pois “ a apreensão ocorreu após o casal ser orientado por duas vezes pela fiscalização e mesmo assim desrespeitar as orientações e persistir na atividade irregular”. Para concluir, coloca-se à disposição dos idosos “para auxiliá-los no que for necessário”.
Descontando-se vertentes político-partidárias, interesses e paixões pessoais em jogo, a histórica animosidade contra fiscais em geral, palpites tolos e infundados de quem fala porque tem boca e escreve comentários porque tem dedos, a ação fiscalizadora da Prefeitura traz à tona uma questão de extrema importância: os velhos conflitos entre Moral, Direito e Justiça.
Aos olhos do coração a apreensão dos alimentos é uma injustiça, um incompreensível ato de tirania, uma maldade cometida contra quem poderia esmolar ou delinquir mas prefere trabalhar honestamente, um rigor injustificável contra quem é refém das burocracias e esgotou-se em tentar preencher, sem sucesso, os requisitos da lei para trabalhar de maneira formalizada.
Sob a ótica do legalismo, “a lei é dura, mas é a lei”, e os ambulantes, independentemente da idade que têm, devem obedecer as regras ao pé da letra. Se a descumprem merecem ser punidos, pois a misericórdia para com eles, se estiverem errados, desprestigia quem que se esforça para trabalhar corretamente, pagar todos os tributos e cumprir as muitas exigências burocráticas, além de estimular outros a infringir as normas.
O clássico livro “Os Miseráveis”, escrito no século XIX, ilustra com perfeição esse dilema. O escritor francês Victor Hugo conta que o policial Javert perseguiu durante anos o protagonista Jean Valjean, pois, pela lei, que cumpria cegamente, deveria prendê-lo porque era um foragido da justiça francesa. Todavia, a longa vida regenerada, reta e coalhada de boas ações do condenado sensibilizou-o por um instante e, quando teve chance de capturá-lo, deixou-o partir. Javert, refém do legalismo, não suportou haver desobedecido à lei e suicidou-se.
Essa espécie de luta há séculos alimenta discussões jurídicas, religiosas, sociológicas, literárias e filosóficas. Aferrar-se ao radicalismo de qualquer dos lados nunca resulta numa solução boa e justa.
Sem dúvida o casal de vendedores tem suas justas razões para fazer do comércio de pães e frutas uma fonte de renda familiar e enfrenta dificuldades para cumprir as regras destinadas à regularização do trabalho de ambulantes, assim como parece evidente que a fiscalização municipal somente fez a apreensão dos produtos por deparar-se com uma situação de algum modo fora da lei.
Não é simples apaziguar os ânimos, compreender as razões e opiniões dos oponentes, dominar intransigências e conciliar pontos de vista, mas é preciso ponderar que entrar na onda de vitimizar um lado e demonizar o outro, a esta altura, servirá apenas para colocar mais lenha no incêndio já estabelecido.
Dentro da lei e do bom senso por certo há uma solução para o impasse.
Inquestionável, porém, é que o caso despertou a atenção para as ações e omissões dos ambulantes e dos fiscais no Município. Tudo precisa ser apurado e solucionado, de preferência com a mesma energia com que, no caso da apreensão dos pães e frutas, cada um vem defendendo seu ponto de vista.
Simone Judica é advogada, jornalista e colunista de O Democrata (simonejudica@gmail.com.br).
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