No final da Ditadura Civil-Militar, o então presidente da república costumava dizer que “quem for contra a abertura, eu prendo e arrebento”, referindo-se ao processo de retomada do regime democrático. A contradição com os princípios políticos sonhados por Jean-Jacques Rousseau e admirados por Alexis de Tocqueville é tão gritante que rapidamente a frase figurou no campo de anedota popular. Aparentemente, o gestor máximo do município de São Roque mostra-se simpático à hipérbole contraditória acima, vide a desastrosa postura relacionada ao Plano Diretor. O último episódio que confirma essa particularidade é o Projeto de Lei que institui parte da lei 11.738 de 2008, a chamada lei de 1/3 para docentes da rede de ensino.
Aprovada em 2008, essa lei, além de determinar o Piso Salarial do Magistério da Educação Básica, estabeleceu prática exitosa experienciada em diferentes redes de ensino: da jornada total de trabalho do professorado, 2/3 deveriam ser destinados à interação direta com os estudantes; e 1/3 voltado às atividades pedagógicas extraclasse, como correção de atividades, preparação de aulas, diálogo com os pares, reuniões com pais e mestres, capacitações, participação em comissões e conselhos educacionais etc.
São Roque apresenta-se como um dos poucos municípios da região a tergiversar sobre a implantação da lei de 1/3. Em normativa de 2011, subverteu a lógica de qualquer regra elementar de matemática, estabeleceu uma esdrúxula equação para dizer que seguia a legislação. A título de exemplo, numa jornada semanal de 44 horas, interpretou-se que 8 horas destinadas às atividades pedagógicas extraclasse compreenderia 1/3.
Indignados com a corruptela, educadores do município protestaram. Diferentes prefeitos de São Roque alegaram que a adoção da normativa colocaria as contas do município em risco, que não poderiam implantar devido à Lei de Responsabilidade Fiscal, que não foi bem isso que ele prometeu durante a campanha etc. Cansados das inúmeras justificativas, professores do município organizados na Associação dos Profissionais de Educação (APE) judicializaram a questão. Vitoriosa em segunda instância, com parecer datado de 11 de novembro de 2024, desejava-se um mínimo de planejamento e respeito aos profissionais do magistério e aos princípios democráticos por parte do prefeito de São Roque.
Desde o final do ano passado, a sociedade civil organizada interpela o Departamento de Educação e Cultura sobre o cumprimento da sentença. Respostas evasivas e justificativas que o impacto econômico encontrava-se em estudo imperaram.
A preocupação dos educadores mostrava-se justa pois a lei de 1/3 representa a reestruturação da carga horária de quase mil profissionais do magistério da rede de ensino de São Roque. Além de uma mudança na concepção educacional e nos tempos pedagógicos.
A sentença determinou que a prefeitura deveria implantar a lei de 1/3 no período máximo de 90 dias, ao contrário, pagaria multa de R$ 500 dia, podendo chegar ao montante de R$ 20.000. No lugar de dialogar com as entidades dos docentes e o Conselho Municipal de Educação para se alcançar a melhor solução, o Poder Executivo recorreu à velha prática da “ditadura da pressa”: apresentou, na última sexta-feira, 7 de fevereiro, PL à Câmara de Vereadores, para ser voltado na semana seguinte.
Para a surpresa das pessoas que acompanham a discussão e fizeram um rico debate do tema em 2023, o PL traz problemas facilmente evitáveis se seguisse princípio tão caro à democracia: o diálogo com os grupos interessados diretamente.
Pesquisas e experiências exitosas revelam que parte das atividades pedagógicas extraclasse devem ser desenvolvidas em local de livre escolha, potencializando a utilização de ambientes acadêmicos e recursos próprios na preparação de aulas, correção de atividades e capacitação. O PL da prefeitura de São Roque ignorou esse ponto – atenuado por emenda parlamentar após protestos de educadores.
Com a justificativa de urgência devido ao período escolar ter iniciado, o PL aumenta a carga horária dos docentes sem uma consulta prévia. Alguns educadores dobram a sua carga horária em municípios vizinhos ou na rede estadual e podem, com a nova normativa da prefeitura de São Roque, incorrer em descumprimento de lei maior.
Antidemocrático, o PL, atrasado em 14 anos, gerou agitação e ansiedade desnecessárias na rede de ensino de São Roque. Essas e outras questões poderiam ser sanadas a partir do simples diálogo.
Questionado, o Poder Executivo afirma que tem as melhores intenções, que só não ampliou o debate devido às pressões judiciais, que da próxima vez será diferente etc. Isso remete às falas paradoxais do último presidente ditador: “Juro que farei deste país uma democracia.”
Rogério de Souza, doutor em Sociologia e professor no IFSP