
Minhas amigas, escrevo emocionada nesta noite fria e tão límpida.
É a limpidez da noite que dimensiona a contundência dos acontecimentos que nos bombardeiam a tentativa de retomar alguma rotina possível, depois do ápice da pandemia de Covid.
Sei que cada uma desenvolve estratégia para manutenção de sua sanidade afetiva: eu evito telejornais e jornais escritos diários, para me concentrar em informações que tenham sobrevivido a alguns dias.
E, como muitas de nós, sigo.
Talvez esta estratégia tenha me dado a perspectiva de que necessitava para compreender minha vergonha de sentir.
Eu tenho vergonha de dizer que sofro com relatos de outras pessoas, que choro quando assisto a vídeos de pessoas mergulhadas na dor, no frio, no desamparo.
Tenho vergonha em me ver sofrendo por sentir.
Então, acima de tudo, defendo o meu orgulho. Faço com que ele seja lustrado e preservado, negando este sofrimento.
Somos educadas a suportar, a nos mantermos funcionais, sermos um tanto moralistas. Não somos educadas para nos irmanarmos e, altivas, afirmarmos que sofremos por sentir.
Parece que este sofrer nos diminui a dignidade – como se sofrer, e reconhecer que sofre por sentir, fosse uma falha de caráter e de saúde. Mal resumindo, não queremos ser taxadas de “mimizentas”.
E é este justamente o ponto: tenho vergonha deste tipo de sofrer, no entanto aqueles que impõem sofrimento se autopromovem, sentem-se confortáveis. E não estou falando apenas dos “poderosos”. O mais grave é o que fazemos em nossas relações íntimas.
Ouvimos o que nos fere passivamente porque não queremos dar a impressão de que fomos atingidas por sentir, apenas.
Assumimos a “culpa” e, assim, o desconforto nos oprime e paralisa.
O agressor segue confortável – altivo porque se vê legitimado em seu julgamento e certeza. Aliás, o que ele mais tem são certezas.
Um exemplo? Circula vídeo na internet em que uma frentista de posto de gasolina esmurra agressor sexual – seus golpes foram tão fortes que o homem foi ao chão.
Ouvi, li mensagens em grupos de amigos e familiares fazendo piada desta mulher, da agressão sofrida pelo homem – como se o fato de ela reagir fosse o absurdo e não a violência sexual sofrida em lugar público, vigiado por câmeras.
É a violência recreativa: fazer piada com o sofrimento alheio.
Pronto. Já ouço reprimendas por não ter humor, por não saber me divertir, por não entender a piada. Mimizenta. E eu, já me sentido culpada, insisto: qual é a graça?
Julie Kohlmann é Doutoranda em Filosofia do Direito, Mestre em Direito Civil, Especialista em Direito Penal e Associada ao IBDFAM – @juliekohlmannadvogada