Telefone celular, redes sociais e TV por assinatura são tecnologias recentes, mas tão presentes no nosso dia a dia que já não conseguimos viver sem elas. Para quem tem por volta de 50 anos, nas décadas de 1970 e 1980 era impensável imaginar que um texto seria escrito no computador, enviado de forma online e que o diagramador não precisaria digitá-lo como faziam os linotipistas, moldando as linhas das colunas em chumbo.
O escritor francês Jules Gabriel Verne (1828–1905), conhecido como Júlio Verne nos países de língua portuguesa, teve a capacidade de imaginar — ou prever — inventos e viagens ao fundo do mar e ao espaço. O Arquivo Vivo desta semana destaca um artigo publicado no jornal O Democrata, na edição de 1º de junho de 1919. O autor, Nerve Luijo, faz um exercício de futurologia, como antecipa o título: São Roque Futuro. Inicialmente, cita o profeta Elias, que viveu aproximadamente 900 anos antes de Cristo. Inspirado pela fé e com o poder profético, Elias previu uma grande seca que se confirmou durante o reinado de Acabe, que havia trocado Deus por Baal, uma divindade pagã.
Ao que tudo indica, e com base em um curso de lógica feito por correspondência, Nerve Luijo é um pseudônimo inspirado no escritor Júlio Verne. Em “Nerve”, o autor apenas trocou as consoantes “n” e “v” de lugar; “Luijo” contém as mesmas letras de “Júlio”, invertidas, e o sobrenome foi colocado antes do nome. Ele escreve: “Assim também nós, embora não possuamos o saber desses grandes profetas, e sem a petulância de nos passar por um deles, observando a marcha do progresso de nosso São Roque, prevemos para o futuro desta terra um lugar de pronunciado destaque entre as outras do Estado.”
Deixa claro que era admirador do prefeito Paulino H. de Campos (1917–1921): “Note-se que esse progresso desta cidade somente há muito pouco tempo teve início… Iniciado o governo pelo ilustre cavalheiro sr. Paulino Hermílio de Campos, uma transformação radical se operou. No Largo da República, onde se estendia há anos aquele charco pútrido, produtor de miasmas, ergueu-se o majestoso jardim que a sua imagem fecunda criou. A Rua da Estação, que constantemente ameaçava o público com os perigosos aterros que possuía, já é outra.”
E então convida o leitor: “Agora, bondoso leitor, escute nossas previsões para o futuro dessa terra… A primeira e mais importante está na continuação do senhor Paulino de Campos na prefeitura do município.” Como observamos, Paulino seguiu no cargo até 1921, numa época em que não havia eleição direta para prefeito. Um dos vereadores era escolhido pelos seus pares para exercer a função.
“Então veremos a Rua da Estação, com outra denominação certamente, deslizar numa declividade suave do largo da estação até o da Matriz. O último aterro, depois da Rua Amador Bueno, terá solução de continuidade para dar lugar a uma magnífica ponte, sob a qual passarão, paralelamente, o Rio Carambeí canalizado e a Rua do Gado, que também terá outra denominação.” As ruas da Estação e do Gado realmente mudaram de nome, passando a se chamar Avenida João Pessoa e Rua João XXIII, respectivamente. Ele previu a construção de uma ponte na Rua da Estação e, com a canalização do rio, acertou ao imaginar a construção de uma avenida até a Praça da Matriz. “Esta avenida, toda arborizada, será ladeada de passeios longos e bem acabados. Entrando no Largo da Matriz, haveremos de ver canteiros esparsos, onde as palmeiras predominarão.” Na Praça da Matriz, porém, palmeiras não foram plantadas.
“Dirigindo o olhar para cima, a Rua 15 de Novembro apresentar-se-á toda macadamizada [pavimentada com pedras britadas] e não veremos mais as arcadas das casas projetadas sobre a rua. Veremos prédios consertados em estilo elegante e moderno. O olhar irá fazer fim num grande armazém, onde hoje está o chamado mercado. O Largo de São Benedito [atual Praça Heitor Boccato] sofrerá profundas modificações. Será cercado de passeios largos, que limitarão ruas em seus lados”. O mercado municipal não se transformou em armazém e, desde os anos 1960, o local abriga a agência dos Correios.
Ainda sobre o largo em frente à Igreja de São Benedito, escreveu: “O largo terá uma pequena descida, toda ajardinada, com uma escada no meio — mais ou menos como no jardim da esplanada do Teatro Municipal de São Paulo. De um ponto culminante, dirigiremos os olhares em todas as direções e então admiraremos a cidade, recortada de ruas novas.”
“A Avenida Tiradentes, cheia de prédios novos, alongar-se-á até a Avenida 3 de Maio.” Talvez tenha imaginado o prolongamento da Tiradentes pelas atuais Avenida Bandeirantes e Rua Professor Tibério Justo da Silva.“A Travessa Carambeí [atual Rua Germano Negrini] invadirá outro chão e apontará na Rua Enrico Dell’Acqua.” Esse prolongamento de fato se confirmou.
“Lá nos altos da estrada de Mayrink, como uma nova cidade a florescer [Mairinque emancipou-se em 1958], divisaremos a ‘Vila Sanitária Paulinópolis’ estendendo-se pela encosta graciosa daquele terreno. Esta tudo terá: água, esgoto, hotel de primeira, capela, cinema etc.” Pode ter imaginado algo similar ao bairro Higienópolis, em São Paulo, cujo nome significa “cidade da higiene” e que foi um dos primeiros bairros planejados da capital paulista, priorizando saneamento e qualidade de vida. Tem alguma dúvida que Paulinópolis seria uma homenagem a Paulino de Campos?
AEROPORTO EM SÃO ROQUE
O maior acerto ficou para o final. Prever que São Roque teria um aeroporto merece o troféu Júlio Verne: “Não digo que teremos, por exemplo, um braço do mar, mas provavelmente teremos uma estação aérea para comboios postais aéreos e paquetes [bilhetes] aéreos de passageiros!”
O primeiro aeroporto exclusivamente civil do Brasil foi o Santos Dumont (Rio de Janeiro), inaugurado em 1936. O aeroporto de Congonhas (São Paulo) também foi inaugurado no mesmo ano. Em 1929, Nerve Luijo já sonhava com um aeroporto em São Roque. Exatos 100 anos depois, em 16 de dezembro de 2019, foi inaugurado o São Paulo Catarina Aeroporto Executivo, localizado no km 60 da Rodovia Castello Branco, em São Roque. “Enfim, teremos certeza de que estas previsões, vindas de um amante do progresso local, muito em breve se transformarão em realidade… e todos nós as apreciaremos”, finaliza.
Vander Luiz