“Corre chamar a parteira que vai nascer.” Esta frase fez parte do cotidiano de cidades, bairros e vilas durante décadas. Hoje, a maioria dos partos ocorre nos hospitais, mas o ofício de parteira não se perdeu no tempo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) divulga que 85% dos partos podem ocorrer sem a participação médica. No Brasil, os partos cirúrgicos ou cesáreas atingem 55% do total de nascimentos, percentual que coloca o país na segunda colocação no ranking mundial.
São Roque contou com a assistência de várias parteiras, com destaque para Nhá Vita. Ela realizou tantos partos ao longo de décadas de trabalho que era chamada de “A Mãe São-roquense” e “A Mãe de São Roque”.
O Arquivo Vivo do jornal mostra o dia em que a cidade chorou a morte da ilustre senhora, na edição de 31 de outubro de 1964. Há 60 anos, a manchete foi direta, justo ela que sempre esteve ligada à vida: “Morreu Nhá Vita!” O próprio redator, que assinava como Framen, defendeu no último parágrafo que o título deveria ser outro: “Sem dúvida alguma, caso houvesse um erro, o título mais legitimamente conquistado na expressão pura e perfeita de um direito seria: ‘MÃE QUERIDA DE TODOS AQUELES QUE VIU NASCER'”.
“A notícia correu célere e brutal, como todas as más notícias, na manhã de 27 [de outubro], estremecendo as nossas sensibilidades e cobrando de cada família o imorredouro testemunho de saudade devido a esse símbolo de bondade e abnegação. Quase todo lar são-roquense recebeu daquelas carinhosas e acolhedoras mãos o fruto marcante da realização de um sonho e da consolidação de um ideal.”
“As tantas da noite, para os nocti vagus (em latim, ‘andarilhos da noite’) de então, era comum ver caminhar apressadamente, sob uma mantinha de lã e com a valise que bem a caracterizava, a figurinha frágil e irrequieta, sempre chamada para socorrer quem dela precisasse e reclamasse seus cuidados. Pobres eram os recursos de então, porém a dedicação, o carinho e a esperança dispensados por quem fez da profissão um sacerdócio supriam, pela fé e a confiança, as falhas que hoje são mais proveitosamente resolvidas pela ciência… Sorridente e alegre, adentrava o rico solar e, com as mesmas expressões de alegria e sorriso, transpunha a porta da humilde choupana.”
A mesma edição trouxe o obituário de Vitalina Mendes (Nhá Vita). A saudosa senhora contava 93 anos de idade, era viúva do senhor Luiz Mendes e deixou os filhos: Benedita Mendes, solteira; Blandina Mendes Júdica, casada com Ettore Júdica; e Roque Mendes, casado com Felícia Squilaro Mendes. Além do filho Mário (já falecido, anteriormente casado com Amélia Ferrarini Mendes). Ela deixou 19 netos, 31 bisnetos e uma tataraneta. O sepultamento ocorreu no mesmo dia no cemitério local. A família publicou um agradecimento: “Família e demais parentes da sempre lembrada chefe.” Frase que demonstra a liderança exercida por Nhá Vita.
Aqui fica uma curiosidade: quem será que realizou os partos dos filhos de Nhá Vita? Certamente, outra conhecida parteira da cidade, como, por exemplo, Dona Mariquinha, que hoje dá nome a uma rua na Santa Quitéria.
MEDALHA NHÁ VITA
Por iniciativa da vereadora Cláudia Rita Duarte Pedroso, a Câmara de São Roque criou, em 2021, a Medalha do Mérito Nhá Vita, entregue anualmente na sessão do Dia Internacional da Mulher (8 de março). A medalha deve ser outorgada a mulheres que tenham se destacado nas áreas de saúde, assistência social, educação, cuidados materno-infantis e afins. A médica ginecologista Anselma Foglia foi a primeira a receber a medalha do mérito “Nhá Vita”, em 2023. Em 2024, a homenageada foi a professora Sidnéia Ferreira da Silva.
Nhá Vita também é lembrada com o nome de uma rua no Junqueira antes mesmo de seu falecimento. Em 15 de abril de 1964, o prefeito Rino Boccato (1964/68) publicou a Lei 533, que “declara oficiais as ruas e logradouros públicos”, incluindo no artigo 4º a oficialização de todas as ruas do Jardim Bandeirantes e da rua Nhá Vita, na Vila Junqueira.
NHÁ VITA ADIVINHOU A ESPOSA DO PRIMEIRO BISNETO
O professor Mário Biazzi, 85 anos, é o primeiro bisneto de Nhá Vita, e sua história não poderia ser diferente. Ela trouxe o menino ao mundo no dia 21 de dezembro de 1938. Além disso, todos os dias, por volta das quatro da tarde, vinha dar banho no bebê. Porém, no dia 13 de janeiro de 1939, chegou atrasada, depois das sete da noite, para cuidar do bisneto que não tinha um mês de vida. Mas apresentou uma boa justificativa: “Venho da casa dos Bonini, onde fiz o parto de uma menina. Vou dizer: ela vai ser a esposa do meu bisneto.” Dizem que praga de parteira pega. Fiquei sabendo que previsão também dá certo.
Naquele dia, nasceu Mariza Marlene Bonini. “Soube dessa história antes de namorar a Mariza. Ela não fazia parte do meu círculo de amizade. Em 1947, participei da peça Branca de Neve e os Sete Anões. Ela foi a Branca de Neve e eu, o Atchim. O Ednelson Franco fez o príncipe. Mas, na vida real, em São Roque, o Atchim casou-se com a Branca de Neve, em 5 de julho de 1962”, relembrou em entrevista ao programa Linha Aberta em 31 de julho de 2021. O ator Juca de Oliveira (16 de março de 1935) também veio ao mundo pela mãos de Nhá Vita.
Na Câmara dos Deputados tramita o projeto de lei (PL 912/2019) que regulamenta a profissão das parteiras tradicionais e prevê qualificação básica de parteira tradicional pelo Ministério da Saúde ou secretarias estaduais de Saúde, além do pagamento de um salário mínimo.
Desde 2015, no dia 20 de janeiro, comemora-se o Dia Nacional da Parteira Tradicional, com base na data de nascimento de Juliana Magave de Souza, nascida em 1908 e falecida em 2005, considerada a parteira mais antiga na região de Macapá (Amapá). O Dia Internacional da Parteira é lembrado em 5 de maio, por iniciativa da Organização Mundial da Saúde.
Vander Luiz