Uma das características do regime democrático de direito é o pluralismo político e, por conseguinte, a liberdade de manifestação e de pensamento. Nos processos eleitorais em si, esse princípio, especialmente os seus avanços e fragilidades, ganha relevo. Pesquisas em diferentes países mensuram o grau de aprofundamento da democracia a partir dessa premissa.
Desde as eleições brasileiras de 2016 verifica-se, no entanto, constrangimentos ao livre pensar e manifestações políticas, levando cidadãs e cidadãos a omitirem sua visão de mundo. Esse fenômeno é denominado “opinião/voto envergonhado” e atinge, geralmente, grupos minoritários que se sentem coagidos e não proferem as suas opiniões sobre temas diversos, com destaque para aqueles associados ao campo moral (ex. aborto, legalização das drogas, pena de morte, eutanásia, etc.).
Na eleição de 2018, amostras de constrangimento contra grupos que pensam de maneira diversa pipocaram em variados lugares, culminando no assassinato, por um seguidor do então candidato Jair Bolsonaro, do mestre de capoeira Moa do Katendê, devido a este defender o voto em Fernando Haddad.
Percorridos três anos e meio de governo, despejou-se mais água na fervura. Recorrendo-se a verve virulenta, o atual presidente refere-se, constantemente, aos opositores políticos como seres insignificantes que precisam ser eliminados. Inclusive agride verbalmente jornalistas que cobrem a sua agenda. Paralelamente à verborragia, aprovou decretos facilitando o porte de armas. Ódio e armas, uma combinação com resultado previsível.
Barril de pólvora planejado, tencionou-se ainda mais esse contexto com o assassinato do tesoureiro do Partido dos Trabalhadores de Nova Iguaçu (PR) e do lavrador de Mato Grosso. O medo, que circulava pelos pés do ouvido e que desaviados associavam às minorias, atravessa, agora, toda a sociedade e abala a estrutura de um processo eleitoral que até então transmitia a imagem de quase perfeição. Como desfecho, cidadãs e cidadãos não se sentem à vontade para manifestar a sua visão de mundo e possível escolha política, mesmo que esta represente o desejo da maioria da população.
Diferentes de outros pleitos realizados nos últimos trinta anos, milhares de brasileiros estão com medo de colar um adesivo no seu carro ou casa, sair com determinada cor de roupa, participar de rodas de conversa sobre política, etc. Registra-se essa atrocidade principalmente contra grupos em situação de vulnerabilidade social. A ausência de empatia no caso do empresário de Itapeva, interior paulista, que humilhou uma cidadã indica que as portas da barbárie estão próximas.
Mesmo nos grupos vistos como organizados reina sentimento intimidatório e pressões sociais para não manifestar a sua opinião política. Professores não pautam determinados temas que constam no currículo por serem considerados (por não educadores) polêmicos. Manifestações políticas são inibidas. Salas de reuniões on-line são invadidas. Jornalistas se furtam ao debate de alguns assuntos com receio da reação de leitores/espectadores. Organizações diversas não realizam determinadas palestras com medo da repercussão. Tende-se a engolir as opiniões políticas, mantendo-se num silêncio constrangedor, instituindo uma paz de cemitério. Assim, instaura-se o império da autocensura, indício nítido de corrosão interna da democracia.
Na prática, retira-se do debate público aquelas pessoas que “ousam” pensar diferente e se instala um modelo de sociedade pautada pelo medo. A intimidação é tal que parece que os adeptos dos arroubos tirânicos venceram. Olhando ao redor, o que está em jogo nesta eleição presidencial não é a escolha de um mandatário para os próximos quatro anos, mas a permanência ou morte do estado democrático de direito.
Rogério de Souza, Doutor em Sociologia e Professor no IFSP